Véspera de Natal na Cidade Luz. O ano era 2012 e lá estava eu, perdido entre a nostalgia do que se foi e daquilo que ainda estava por vir.
Charles Aznavour ainda cantava como um pássaro, os grandes atentados terroristas ainda não haviam acontecido, os parisienses nem sonhavam com um incêndio na Notre Dame e os Jogos Olímpicos eram apenas um projeto distante.
Já passava das 20h e a chuva fina caia como se a cidade quisesse se esconder em um véu delicado, em um lamento suave, enquanto que nas ruas, pessoas apressadas, todas em busca do aconchego do lar, de uma ceia, de um momento com a família.
A cidade, tão acostumada com o movimento frenético de seus habitantes, parecia quase suspensa naquela noite fria de inverno, como se o tempo também tivesse uma pausa para celebrar.
Eu acabara de sair da estação do metrô Saint-Michel, um lugar sempre lotado, mas agora mais vazio que o normal.
As escadas rolantes davam um tom melancólico ao cenário, com pessoas subindo rapidamente, outras descendo apressadas, todas tentando chegar aos seus destinos, como se cada uma carregasse consigo a responsabilidade de estar em algum lugar, com alguém, em algum momento que parecia urgente, como se o Natal fosse mais uma obrigação do que um motivo de alegria.
O som inconfundível das sirenes das ambulâncias cortava o ar frio da noite. Eu sabia que essas sirenes nunca cessaram em Paris, mas naquela véspera de Natal, me traziam lembranças das pessoas que deixei no Brasil e aquelas que já haviam partido para sempre.
A chuva fina, quase invisível que caía e gelava meu rosto, dava à cidade um aspecto de melancolia quase palpável. As luzes de Natal nos postes e nas vitrines das lojas, muitas já fechadas, piscavam, refletindo-se nas poças de água que se formavam pelo asfalto.
O cheiro do pão quente das boulangeries e o vapor das xícaras de café invadiam o ar, como se a própria Paris estivesse se preparando para um abraço quentinho em uma noite de paz e fraternidade.
Já estou a poucos passos do meu hotel, um edifício simples porém muito aconchegante na rue Saint-Séverin, quando vejo à minha frente um morador de rua, um homem de aparência cansada e cabelo bagunçado, sentado, abraçando os próprios joelhos. Ele vestia uma blusa fina, encharcada pela chuva, e seus olhos carregavam uma tristeza silenciosa.
Ele olhou para mim, como quem esperava algo. Suas palavras saíram baixas, quase como um suspiro: “Monsieur, vous avez de la monnaie?” (Senhor, você tem algum troco?)
Eu sabia que ele não estava pedindo apenas dinheiro. Ele estava pedindo calor, algo que fosse mais do que as moedas que ele poderia guardar em seus bolsos rasgados. Olhei para ele e algo me tocou de forma profunda.
O homem ali, com sua barba por fazer e roupas molhadas, era uma realidade que muitos gostariam de ignorar. Ele era a parte de Paris que ninguém queria ver, a parte que está sempre à margem, invisível para quem caminha apressado, para quem já tem seu lugar à mesa.
Em um impulso, tirei meu casaco pesado e o envolvi em seus ombros. Ele me olhou surpreso, como se não acreditasse no gesto. Peguei um sanduíche que tinha em minha mochila, ainda embalado, e o entreguei para ele.
Procurei em meus bolsos e ainda encontrei alguns poucos Euros e três passes de metrô, que também foram entregues a ele. Seus olhos brilharam por um segundo, e ele me disse: “Merci, monsieur, merci…” (Obrigado, senhor, obrigado…).
Eu não sabia o que responder. Preferi um sorriso e o silêncio. O sorriso acolhe, aproxima e aquece; o silêncio conecta, não questiona e não exige explicação.
O homem pegou o sanduíche e abraçou o casaco com mais força, como se fosse possível se aquecer com aquele pedaço de generosidade. Mas, naquele momento, ele se aquecia, não apenas fisicamente, mas no fundo de sua alma, e eu senti que algo em mim também se aquecia. Um calor que vinha de dentro da alma.
Lentamente me afastei dele e corri alguns metros para a porta do hotel (agora quem estava com frio era eu) e antes de abrir a porta, olhei para trás uma última vez.
Ele estava ali, com o casaco sobre os ombros e o sanduíche nas mãos, em um instante de paz, de acolhimento, que Paris, com todas as suas luzes e luxo, jamais pode lhe proporcionar.
Naquela noite de Natal, em Paris, descobri que o maior presente que alguém pode dar não é o que compramos ou embalamos para presente, mas o que oferecemos de coração e que, muitas vezes, é na simplicidade dos gestos mais humildes que se encontra o verdadeiro sentido da vida.